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Justiça autoriza paciente a entrar no Brasil com 300 g de maconha

Sob a luz forte do meio-dia e o reflexo das areias da praia do Arpoador, na zona sul do Rio de Janeiro, um policial militar precisou apertar os olhos para enxergar as letras miúdas do papel que Viviane Silveira, 35, estendeu a ele ao ser abordada.

Na folha lê-se que “ficam proibidos o indiciamento ou prisão por agentes públicos” da carioca, “bem como apreensão dos produtos” que ela utiliza em seu tratamento médico para fibromialgia: flores de Cannabis sativa, de uso proibido no país, e que o PM havia chamado, genericamente, de maconha e arrancado dos dedos de Viviane.

“Ele foi tão bruto que, se eu estivesse com minhas unhas de gel, ele tinha quebrado”, critica ela, que diz ter se lembrado dos “enquadros” da PM comuns na favela da cidade onde nasceu e cresceu. “Não vou me esconder. Minha medicação é legalizada para mim. E isso deixou o policial revoltado.”

Procurada, a Polícia Militar do Rio de Janeiro não retornou os contatos da Folha até a conclusão da reportagem.

As flores haviam sido adquiridas legalmente na Alemanha, onde Viviane mora há mais de 15 anos, entre os cuidados com os dois filhos, de 16 e 7 anos, e bicos como a DJ de funk e MC Vivi Boop. Foi lá, após quase 20 internações pelas dores intensas causadas pela doença reumatológica, que ela passou a usar a Cannabis de forma medicinal.

“Já tinha sofrido problemas de fígado, pâncreas e tireoide por causa das medicações fortes que tomava. Meu cabelo cai quase todo”, conta. “A qualidade de vida que a maconha me trouxe foi surreal. Antes eu mal conseguia brincar com a minha filha. Hoje jogo futebol com meu filho numa boa.”

Munida de receitas e relatórios médicos, Viviane passou a receber reembolso do plano de saúde da família para parte dos quase R$ 2.000 que gasta por mês com as flores.

“O plano de saúde pagava por medicamentos caros e que não impediam as minhas hospitalizações, como morfina e imunossupressores, mas não queria pagar a maconha”, lembra ela. “Foi uma vitória muito grande receber esse reembolso. Até me emociono”, completa, com a voz embargada.

O papel na mão do PM era um habeas corpus assinado pela juíza Valéria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro.

Ela concedeu o salvo-conduto para que Viviane pudesse entrar e sair do Brasil com 300 gramas de flores de Cannabis sativa e com um aparelho vaporizador para “uso pessoal no âmbito de seu tratamento médico”. O caso foi classificado pela juíza e pelo MPF (Ministério Público Federal) como “excepcionalissimo”.

A autorização judicial foi entendida como necessária para garantir que Viviane “entre e permaneça em solo nacional portando produto terapêutico à base de Cannabis sativa que ela já administra em si mesma de forma regular, sem sofrer qualquer tipo de sanção criminal”.

“Se fosse presa, sofreria violência em sua liberdade de ir e vir, mas também teria seu tratamento indevidamente interrompido por um ato estatal, em clara violação a normas internacionais que garantem seu direito fundamental à saúde, e aos artigos 6 e 196 da Constituição Federal”, escreveu a juíza.

O pedido à Justiça Federal surgiu depois que o pai de Viviane foi diagnosticado no Brasil com câncer já em estágio avançado, e ela decidiu que precisava dar um jeito de vir ao país.

“Fazia dez anos que eu não vinha ao Brasil porque, antes do reembolso do plano, não sobrava dinheiro. Agora, precisava dar um abraço no meu pai. Mas e a maconha? Não queria ficar na ilegalidade nem usar produto ruim ou correr o risco de tomar uma dura da polícia ou ser processada por tráfico de drogas”, conta.

Em viagens pela Europa, Viviane carrega uma autorização do Ministério da Saúde da Alemanha válida em toda a União Europeia. “As polícias e o judiciário de todos os países do bloco já conhecem essa documentação, então eu viajo tranquila. Mas nunca tinha arriscado viajar a outros países”, diz.

“Entrei em contato com a Anvisa, mas não recebi resposta. Entrei em contato com o Ministério da Saúde, e nada. Foi quando topei com uma notícia em que um advogado falava sobre ações na Justiça envolvendo autocultivo de Cannabis para produção de óleos para consumo medicinal. Fui atrás deles.”

A advogada criminalista Marcela Sanches, que representou Viviane no pedido, explica que o artigo 2º da Lei de Drogas (11.343, de 2006) fala em uso medicinal, mas ele não foi regulamentado.

“Muitos pacientes tiveram plantas apreendidas e foram submetidos a constrangimentos, como conduções à delegacia ou mesmo uso de algemas, além de outras medidas desproporcionais”, relata.
Para ela, trata-se de uma “situação complexa porque a polícia entende que é crime até ser provado que o uso é medicinal”.

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